ANTECIPAR, PARA NÃO TER DE OPTAR ENTRE DEFESA OU FERROVIA
2025-08-08 21:02:58

Em março de 2021, o navio Ever Given bloqueou o canal do Suez durante seis dias. Este incidente, aparentemente isolado, custou à economia global perto de 60 mil milhões de dólares em impacto comercial. O impensável veio revelar a fragilidade de cadeias globais de comércio e a incapacidade coletiva em antecipar disrupções sistémicas. Vivemos a década de maior instabilidade geopolítica desde o fim da Guerra Fria. Em apenas cinco anos, testemunhámos uma pandemia global, o regresso da guerra à Europa, a tensões crescentes no Médio Oriente e a escalada de conflitos comerciais entre potências globais. Assistimos ainda a mudanças sociais e tecnológicas a um ritmo inédito, para as quais os governos estão longe de saber acompanhar tal velocidade. Em Portugal, surgiram recentemente notícias de que o aumento da despesa em defesa poderá comprometer investimentos na ferrovia. Este exemplo revela a dificuldade em antecipar cenários e a tomada de decisão reativa que ainda caracteriza a governação em diferentes países. A escolha entre prioridades com enorme impacto para o futuro deve ser antecipada e planeada em cenários alternativos para suportar decisões mais fundamentadas. O Estado e a administração pública foram desenhados para um mundo previsível e incremental. Hoje, enfrentamos um contexto onde uma ameaça iraniana de bloquear o estreito de Ormuz pode afetar os preços energéticos europeus em horas, ou onde a inteligência artificial redefine setores inteiros em meses. A reforma da administração pública, recentemente anunciada em Portugal, pode representar uma oportunidade única para institucionalizar capacidades antecipatórias. Esta não pode ser “mais uma reforma”. Nas últimas décadas, Portugal implementou sucessivas modernizações administrativas desde o programa Simplex aos balcões únicos, passando por várias plataformas digitais setoriais. Muito foi conseguido, mas falta ainda saber “ligar muitas peças” para responder aos cidadãos e empresas. O problema não é tecnológico. É metodológico. Reformamos ainda por silos, implementamos soluções setoriais e raramente fazemos o exercício de cenários, avaliação de riscos ou medição de impacto transversal que permita antecipar as consequências das políticas. Este desafio não é apenas público. No setor privado, a indústria automóvel europeia ilustra os custos da falta de antecipação. Enquanto construtores como a BMW ou a Volkswagen faziam uma lenta transição energética, a China investia estrategicamente em baterias, software e talento. Hoje, os fabricantes chineses competem diretamente nos mercados europeus e contrataram os melhores designers e engenheiros do setor. E o impacto ainda só agora começou. Na inteligência artificial (IA) observamos padrões semelhantes. Os chips são americanos e uma parte substancial dos cientistas de dados está na China. Na Europa, o investimento em IA é desproporcional: o “enorme pacote financeiro” anunciado pela Comissão tem um valor total que não iguala sequer a última ronda de financiamento da OpenAI. É por isso cada vez mais importante integrar ferramentas de antecipação e cenarização nas organizações públicas e privadas. O Reino Unido criou equipas permanentes de análise prospetiva no Governo. Singapura utiliza cenários alternativos para principais decisões de política pública. A Finlândia institucionalizou o Committee for the Future no Parlamento. A framework da OECD, de 2024, defende explicitamente a transição para uma “governança de antecipação”. As metodologias não são novas, contudo, é necessário não apenas formar equipas de planeamento, mas sobretudo saber incorporar o mesmo nas ações, antes da sua implementação. E, com o crescimento da IA, estes instrumentos podem contribuir para processar mais dados, de mais fontes, para um melhor suporte à decisão fundamentada. Numa era em que a velocidade das mudanças supera a capacidade da resposta institucional, a governação de curto prazo e orientada a calendários eleitorais curtos não é suficiente. O futuro não se prevê, mas prepara-se. Harold Macmillan, ex-primeiro-ministro britânico da década de 1950-60, quando perguntado sobre o que mais o preocupava no Governo, respondeu: “Events, dear boy, events” (“Os acontecimentos, meu caro, os acontecimentos”). Décadas depois, os acontecimentos continuam a surpreender quem governa de forma reativa. Especialista em políticas públicas e ex-secretário de Estado da Justiça Pedro Ferrão Tavares