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DESCARBONIZAÇÃO DA MOBILIDADE NO MODO "PILOTO AUTOMÁTICO": SERÁ SUFICIENTE?

Expresso Online

2025-08-07 21:03:13

Em agosto são recorrentes as publicações nas redes sociais sobre longas filas de veículos elétricos esperando para recarregar baterias sob um sol tórrido, enquanto a ainda maioritária clientela dos carros com motores de combustão em poucos minutos atesta e segue viagem. Com o passar dos anos e o reforço das infraestruturas de carregamento, esse quadro irá alterar-se. Hoje é notória uma maior procura pela mobilidade elétrica em Portugal, mas quando colocamos em perspetiva os números do mercado automóvel torna-se evidente que a transição energética nos transportes será um caminho especialmente difícil. Nos primeiros sete meses deste ano foram vendidos em Portugal 28.649 ligeiros de passageiros 100% elétricos, segundo a ACAP - Associação Automóvel de Portugal. O número espelha um crescimento homólogo de 27%. Não há muitos sectores de atividade que se possam gabar de crescer a esse ritmo. Mas no mesmo período o crescimento dos híbridos a gasolina foi ainda mais expressivo: as vendas dispararam 70%, para 31.765 unidades. E os dados da ACAP mostram também que onde grande parte dos portugueses estão a depositar o seu dinheiro (e a sua confiança) continua a ser na gasolina: de janeiro a julho 28,5% dos ligeiros de passageiros vendidos em Portugal foram carros alimentados a gasolina, 23,9% híbridos (na sua maioria a gasolina) e 20,2% elétricos puros. Portugal tem um parque automóvel com mais de 7,3 milhões de veículos, dos quais cerca de 6 milhões são ligeiros de passageiros, e esse número tem crescido de ano para ano, mostrando que o país não apenas vai substituindo a frota (embora a um ritmo lento, segundo a ACAP), como vai pondo mais viaturas em circulação, com o consequente aumento do consumo energético (e das emissões de dióxido de carbono). Uma pequena parte do aumento do parque automóvel estará associada ao crescimento da população. Na última década o país passou de 10,3 para 10,7 milhões de habitantes, segundo o Instituto Nacional de Estatística. Mas o parque de ligeiros no país cresceu bem mais que isso, ganhando mais de 1,4 milhões de veículos (passou de 4,5 milhões de ligeiros em 2015 para 5,97 milhões no final de 2024). O último balanço energético da Direção-Geral de Energia e Geologia (DGEG), que revelou uma queda da dependência energética do exterior, indica que, em termos globais, a economia portuguesa até está a gastar menos energia para produzir riqueza: a intensidade energética (medida em toneladas equivalentes de petróleo consumidas por cada milhão de euros de Produto Interno Bruto) recuou 12,6% na última década. Todavia, se quisermos garantir em Portugal um processo de descarbonização bem sucedido a área da mobilidade deverá merecer dos decisores políticos nacionais uma atenção redobrada. Afinal, o transporte rodoviário representa 34% do consumo de energia final em Portugal, batendo o peso quer da indústria (28%), quer do consumo doméstico (18%), quer dos serviços (menos de 15%). Ou seja, se há área onde é essencial trabalhar para cortar emissões é nos transportes. E com mais carros nas estradas vem um maior consumo energético. Os números do mercado de combustíveis rodoviários revelam que em junho o consumo anualizado de combustíveis rodoviários em Portugal estava a crescer 1,1% face ao ano passado, impulsionado sobretudo por um aumento de 6,5% do consumo de gasolina (o gasóleo apresentava um recuo de 0,7%), de acordo com a DGEG. Os números da ENSE - Entidade Nacional para o Sector Energético indicam que em cada um dos seis primeiros meses deste ano as introduções no mercado português de gasolina ficaram acima das registadas nos mesmos meses de 2024 e de 2023. Nos últimos anos o país tem registado uma procura mais elevada por carros a gasolina, embora a maior parte do parque ainda seja alimentado a gasóleo. O que as vendas de carros novos sugerem é que o forte crescimento da procura de automóveis elétricos é, para já, insuficiente para colocar Portugal numa trajetória previsível de descarbonização total do transporte rodoviário. Continuamos a vender mais veículos a gasolina do que 100% elétricos, o que adiará por mais alguns anos (talvez mais de uma década) as decisões de migração para a eletrificação de dezenas de milhares de portugueses. A questão da eletrificação do parque automóvel deixará de ser um problema no dia em que o gasóleo e a gasolina sejam substituídos por versões 100% assentes em biocombustíveis ou combustíveis sintéticos, mas esse dia ainda não está no horizonte. O projeto de biocombustíveis sustentáveis da Galp em Sines (com um investimento de 400 milhões de euros) deverá arrancar a produção em 2026 e produzirá anualmente 240 mil toneladas por ano de gasóleo renovável. Embora seja um esforço no sentido certo, é apenas uma fração (5%) das necessidades do mercado nacional: Portugal consome anualmente 4,5 milhões de toneladas de gasóleo (e cerca de 1,2 milhões de toneladas de gasolina). A opção elétrica é uma tecnologia madura e imediatamente acessível. Grande parte das marcas de automóveis tem ofertas de carros elétricos, e o sobrecusto que essas opções ainda apresentam (no valor a pagar à cabeça pela viatura) pode ser recuperado em meia dúzia de anos com os ganhos na energia: percorrer 100 quilómetros num carro elétrico sai substancialmente mais barato do que num carro a gasolina ou a gasóleo, desde que os carregamentos sejam feitos sobretudo em ambiente doméstico. A adesão dos portugueses aos carros elétricos tem sido crescente, ultrapassando, com larga margem, os apoios que o Governo colocou à disposição para incentivar a aquisição desse tipo de veículos (o Fundo Ambiental disponibilizou este ano 1425 cheques de 4 mil euros para particulares). A procura pela mobilidade elétrica segue, assim, em piloto automático: o mercado está a provar que a procura se vai materializando, independentemente de haver ou não subsidiação. A recente revisão do regime jurídico da mobilidade elétrica, aprovada em Conselho de Ministros a 31 de julho e promulgada esta quarta-feira pelo Presidente da República, foi bem recebida pela comunidade de fãs da Tesla, com milhares de proprietários ansiosos pela possibilidade de a marca norte-americana expandir a sua própria rede de postos. O Governo defende que o novo regime simplificará os processos de carregamento e trará maior transparência de preços, mas o tema está longe de ser consensual. O debate que antecedeu este novo regime ficou marcado pela preocupação de quem acredita que virá aí uma diminuição do ambiente concorrencial, com a exclusão de muitos comercializadores da rede de carregamento na via pública, deixando apenas aos operadores com maior capacidade para investir nas suas próprias redes de carregadores a liberdade de fixação de preços. Ampliar a rede de carregamento público e tornar mais baratas as sessões de carregamento será crítico para conquistar a confiança das famílias nas opções elétricas, sobretudo as que hoje (e num futuro previsível) não têm condições logísticas para fazer carregamentos domésticos. O atual Governo já mostrou a sua vontade de contribuir para a eletrificação do país, o que fica patente, por exemplo, no anúncio de cheques para que as famílias cortem no consumo de gás. Despejar dinheiro nem sempre resolve os problemas, mas em alguns casos pode ser uma ajuda importante. Ainda esta semana a ministra do Ambiente anunciou os termos da iniciativa para subsidiar a troca de equipamentos a gás por versões elétricas. Os apoios chegaram a ser prometidos para junho, depois julho, e entretanto entrou agosto e ficou para setembro. Será desta? No que toca aos transportes, o desafio é pesado. A procura por carros elétricos existe e está a crescer. Politicamente o Executivo prometeu um quadro mais simples para os utilizadores desse tipo de veículos. Mas basta olhar para a evolução das vendas de carros em Portugal para constatar quão complexo será o processo de transição energética nas nossas estradas. A maioria das famílias continua a preferir carros a gasolina ou híbridos a gasolina. E enquanto os motores de combustão continuarem a carburar também a fatura energética e ambiental do país continuará a queimar. Não basta confiar numa transição em modo "piloto automático". Procurar as soluções para garantir de forma célere a descarbonização dos transportes deverá ser, por isso, uma prioridade de qualquer decisor comprometido com o ambiente, a sustentabilidade, a redução da dependência energética do exterior e a melhoria da qualidade do ar que respiramos. DESCODIFICADOR Mobi.E. É a entidade responsável pela gestão da rede pública de carregamento de veículos elétricos e pela articulação entre operadores de postos (as empresas que investem em carregadores, recebendo uma tarifa em cada utilização) e comercializadores (as empresas que vendem a energia e faturam ao utilizador, independentemente de quem seja o proprietário do posto). Hoje há mais de 12.400 pontos de carregamento na rede Mobi.E, que atingiu em julho 813 mil carregamentos, mais 46% do que em julho de 2024 e o maior registo de sempre. A revisão do quadro jurídico da mobilidade elétrica deverá desde já enfraquecer a importância da Mobi.E, uma vez que permitirá que comercializadores e operadores de pontos de carregamento possam operar sem terem de estar ligados àquela entidade. E VALE A PENA LER A ENTSOE, associação europeia dos operadores das redes de transporte de eletricidade, divulgou no final de julho a sua proposta preliminar de ajustes à metodologia europeia para as avaliações sobre o grau de preparação das redes elétricas, que apoiam os Estados-membros na gestão dos investimentos e ativos que são necessários para garantir, a médio e longo prazo, uma operação fiável dos sistemas elétricos, minimizando os riscos de falhas no abastecimento. A proposta da ENTSOE, que pode ser consultada aqui, será objeto de uma consulta pública, antes de a associação enviar aos reguladores europeus a sua proposta final de alterações. Já esta semana a mesma ENTSOE divulgou a sua resposta à Comissão Europeia no âmbito do pacote que está a ser preparado para as redes elétricas, defendendo a eliminação de obstáculos para o reforço das redes, num documento disponível aqui. Esta edição da newsletter termina aqui. A próxima chegará à caixa de correio eletrónico dos nossos assinantes a 21 de agosto. Até lá, conte com mais energia no Expresso. Se tiver algum comentário, crítica ou sugestão, pode enviar um e-mail para mprado@expresso.impresa.pt. Até breve! Miguel Prado Editor de Economia Miguel Prado