A ENERGIA É UMA ARMA
2025-07-24 21:06:54

Há exatos quatro anos, a 24 de julho de 2021, a Península Ibérica viveu um dos momentos mais desafiantes da última década. Por uns instantes, numa tarde de sábado, as redes elétricas de Portugal e Espanha viveram no fio da navalha, como então escrevemos no Expresso. Centenas de milhares de consumidores ficaram sem energia durante quase uma hora. Mas rapidamente os gestores da rede equilibraram o sistema e normalizaram o abastecimento. Nesse pequeno apagão e no outro, bem mais grave, de 28 de abril de 2025, os dois países evidenciaram o caráter crítico da rede elétrica. Conseguir autonomia na geração de eletricidade e na operação da rede será cada vez mais importante. É também isso que o Reino Unido procura ao apoiar novas centrais nucleares, como Sizewell C, cujo investimento ascenderá a pelo menos 38 mil milhões de libras. Serão quase 44 mil milhões de euros (se não houver mais derrapagens). Sizewell C é o símbolo do compromisso político de uma parte da Europa em torno da energia nuclear, matéria que está muito longe de gerar consensos. O Reino Unido quer que a central se materialize, garantindo à rede elétrica dois reatores com uma potência total de 3,2 gigawatts (GW). Após uma década e meia de trabalhos de desenvolvimento do projeto, o Estado britânico reduziu a sua posição de 84% para 44,9%, o que foi possível mediante a entrada de vários investidores privados em Sizewell C. Também a EDF, referência na exploração da energia nuclear em França, fez encolher a sua participação de 16% para 12,5%. E na nova configuração de financiamento da central entram a Centrica, o fundo de pensões La Caisse e a Amber Infrastructure. Nenhuma destas entidades aceitaria comprometer milhares de milhões de euros dos investidores que representam sem garantias de uma razoável remuneração dos seus capitais. E ao anunciar a tomada de 15% no projeto a britânica Centrica indicou que há "proteções robustas" contra atrasos de construção e derrapagens de custos, com um modelo de remuneração da base de ativos que garantirá aos investidores um retorno de 10,8% durante a construção (e não apenas quando a futura central estiver pronta, o que se espera que aconteça algures entre 2035 e 2040). O projeto custará (se tudo correr bem) 44 mil milhões de euros. São mais de 13,7 milhões de euros por megawatt (MW), um elevadíssimo investimento à cabeça. A título de comparação, as grandes centrais solares que estão a ser construídas de norte a sul de Portugal custam cerca de 0,7 milhões de euros por MW (em alguns casos menos que isso). Note-se, todavia, que há múltiplas diferenças entre os dois recursos. As fotovoltaicas produzem apenas durante as horas de sol, enquanto as centrais nucleares geram eletricidade em contínuo. As centrais solares ocupam mais território para conseguirem somar a potência de um só reator nuclear. A vida útil de uma central nuclear será o dobro da de uma fotovoltaica. Ao anunciar a decisão final de investimento para Sizewell C o Governo britânico enfatizou que o projeto permitirá fornecer energia limpa a seis milhões de famílias durante 60 anos. A construção desta central nuclear levará pelo menos uma década. Nesse período os investidores já começam a ser remunerados, com o Governo a estimar que ao longo desta década cada família britânica pagará em média uma libra (1,15 euros) por mês para suportar a aposta em Sizewell C. O projeto nuclear surge depois da muito criticada experiência de Hinkley Point C, também em Inglaterra, com uma central de 3,2 GW, cujo custo deverá ascender a 46 mil milhões de libras (53 mil milhões de euros), fruto de sucessivas derrapagens. Como a tarifa garantida àquele projeto vai sendo atualizada pela inflação, a conta a pagar pelos consumidores britânicos não será leve. No final de 2023 o preço a pagar já ia em 128 libras por megawatt hora (MWh), algo como 147 euros por MWh. É mais do dobro do preço grossista médio que a Península Ibérica regista este ano, da ordem dos 65 euros por MWh. A opção nuclear proporciona uma forte capacidade de carga para a rede elétrica, com elevada disponibilidade durante o dia e ao longo do ano. Mas essa valiosa garantia de potência firme tem vindo acompanhada, mostra o histórico de vários projetos na Europa, de encargos de construção altamente voláteis, com ativos que, após entrarem em operação, requerem planos de manutenção exigentes, com paragens prolongadas, que implicam a existência de capacidade de backup com potência similar para entrar em operação quando um reator tem de parar. Em Portugal o sistema elétrico é flexível há largos anos, com a gestão da rede a implicar uma cuidada articulação de dezenas ou centenas de unidades de geração para garantir que quando há menos produção eólica entra em ação potência hídrica ou alimentada a gás, de forma a garantir, segundo a segundo, uma perfeita equivalência entre a procura e a oferta. A curva da produção fotovoltaica vem acentuar esse desafio, obrigando entidades como a REN (em Portugal) e a Red Eléctrica (em Espanha) a garantir em poucos minutos a ativação de centenas ou milhares de megawatts quando se aproxima o pôr do sol e a produção fotovoltaica cai a pique. À medida que vai entrando mais capacidade renovável na rede elétrica maior será o desafio da flexibilidade, quer do lado da produção, quer do lado do consumo (vale a pena ler o artigo de opinião de Célio Pinto, da EML, a respeito do apagão de 28 de abril e das necessidades de flexibilidade e resiliência). A pulverização dos pontos de consumo e de produção (e de autoconsumo), a aposta no armazenamento (com a democratização das baterias) e o disparo da mobilidade elétrica acrescentarão uma camada de complexidade na gestão das redes. No Reino Unido as autoridades viram na expansão da frota nuclear "um grande impulso para a segurança energética, o emprego e o crescimento económico", procurando "substituir a dependência do Reino Unido dos mercados de combustíveis fósseis por eletricidade limpa produzida de forma endógena e que o país controla". A energia é uma arma. E isso tem sido evidente quer nas opções das nações que decidiram financiar e assegurar novas frotas de centrais nucleares, quer pelos países que privilegiaram a descarbonização por via da aposta na eletricidade renovável (foi o caso de Portugal). O caráter estratégico da energia torna-se evidente quando, por exemplo, o novo embaixador dos Estados Unidos da América em Portugal, John Arrigo, promete, no Senado norte-americano, não só defender a expansão dos interesses comerciais americanos no país mas também "enfrentar os desafios de segurança nacional colocados por rivais como a China". "Trabalharei de forma estreita com Portugal em torno das preocupações sobre o investimento da China e a sua influência em sectores críticos", declarou há dias o diplomata, questionando, em concreto, a detenção de participações em empresas portuguesas de energia e de construção. No primeiro caso referia-se aos exemplos evidentes da EDP e da REN, no segundo à Mota-Engil. Os EUA são, naturalmente, parte interessada na política energética portuguesa. Segundo dados da REN, na primeira metade deste ano os EUA representaram 33% do abastecimento de gás natural de Portugal (atrás da Nigéria, com cerca de 54%), uma quota que fica aquém dos quase 45% do mesmo período do ano passado. Quanto mais Portugal acelerar a transição energética, menor será a dependência do exterior. Mais eletricidade renovável traduzir-se-á em menores volumes de aquisição de gás natural. E a crescente eletrificação de consumos, a par com a substituição de gás natural por gases renováveis (como o biometano ou o hidrogénio verde produzidos localmente), também reduzirão as compras portuguesas de gás no mercado internacional. Mas se os EUA são hoje uma peça importante na matriz energética portuguesa, Portugal é residual na carteira de clientes dos EUA. Dados da Energy Information Administration (EIA), do Governo norte-americano, mostram que no ano passado 57% das exportações de gás natural dos EUA foram gás liquefeito (o restante seguiu por gasoduto para Canadá e México). E no total de vendas ao exterior de gás natural liquefeito Portugal representou apenas 1,5%. Os principais destinos do gás liquefeito dos EUA são os Países Baixos, França e Japão, numa lista onde vários outros países se destacam com quotas superiores a Portugal, desde o Reino Unido e Alemanha à Coreia do Sul e China, bem como a Índia. Esta semana a Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS), em parceria com a Brookings Institution, publicou um estudo enfatizando o sucesso de Portugal e Espanha na resposta à crise energética de 2022 e notando que "Portugal e Espanha estão preparados para beneficiar económica e geopoliticamente da transição energética, graças aos recursos renováveis de classe mundial, aos conhecimentos técnicos e à existência de instituições fortes" (deixamos-lhe a ligação para o estudo no final da newsletter). Com uma liderança política altamente volátil, como Donald Trump, os Estados Unidos têm o desafio estratégico de combater a liderança chinesa no domínio da energia. Mas em múltiplas frentes essa agenda não está a ser particularmente bem sucedida. A Tesla, um ícone do capitalismo americano e da aposta na transição energética made in USA, vem enfrentando alguma resistência. Esta quarta-feira apresentou ao mercado uma redução de 12% das receitas do segundo trimestre e uma derrapagem de 16% no seu lucro. A concorrência global de outras marcas na mobilidade elétrica tem aumentado, sendo visível a ascensão e afirmação da indústria automóvel chinesa neste domínio. Não é só aí. Há largos anos que a China lidera a produção global de painéis solares. Contudo, o mercado chinês continua ainda fortemente carbonizado: no ano passado 58% da produção de eletricidade na China veio do carvão, de acordo com os dados publicados pela Ember. Em termos absolutos (em terawatts hora gerados), o país tem produzido mais eletricidade com carvão ano após ano, para acompanhar as necessidades crescentes de energia do mercado. Porém, em retrospetiva, é evidente uma tendência de transição: em 2007 o carvão representava 81% da produção de eletricidade na China, e essa quota tem vindo a encolher ao longo do tempo, sobretudo por via da aposta do país na energia solar e eólica. O desafio de descarbonização da China é colossal. Os 5864 TWh de eletricidade produzida com carvão no ano passado fazem mais de 117 vezes todo o consumo anual de eletricidade em Portugal, e substituir essa fonte barata e poluente será uma missão complexa. Em 2024 a energia solar pesou 8,3% na geração de eletricidade da China, tendo uma margem de progressão substancial. A título comparativo, no ano passado a energia solar teve em Portugal um peso de 9,4% no nosso consumo de eletricidade (e no primeiro semestre de 2025 o seu peso ascendeu a 10,7%). O percurso português na última década revelou uma descarbonização bem sucedida, com a desativação das centrais a carvão do Pego e de Sines, em 2021, a ser feita sem sobressaltos no funcionamento da nossa rede elétrica. Esta caminhada assenta numa teia de múltiplas dependências. Precisamos de capital, porque a eletrificação de base renovável envolve avultados investimentos iniciais. Precisamos de equipamentos, e a China tem sido um parceiro de referência de grande parte do planeta no fornecimento de módulos fotovoltaicos, baterias e carros elétricos. Mas também continuamos a necessitar de gás como backup no sistema elétrico e como energia segura onde a eletrificação não chega, e aí temos tido como aliados a Nigéria e os Estados Unidos. Cada país terá as suas limitações naturais. Não temos em Portugal dimensão relevante para competir com a importação de painéis solares chineses e criar uma indústria capaz de fabricar anualmente 1 a 2 gigawatts (GW) de módulos de baixo custo (é disso que precisaremos nos próximos anos). Mas a nossa indústria automóvel está a migrar para os veículos elétricos: é o caso da Stellantis, em Mangualde, e a Autoeuropa, em Palmela, para lá caminha. Portugal fechou 2024 com uma dependência energética do exterior de 64,1%, um mínimo histórico, que atesta a capacidade do país de seguir um caminho de maior aposta em fontes endógenas (complementadas, é certo, pelo auxílio precioso da integração no mercado ibérico e da importação de eletricidade de Espanha). Fazer recuar ainda mais essa dependência energética é algo que está ao nosso alcance, como país, mas que não depende em exclusivo da vontade de um ator isolado. Posicionar Portugal como um mercado onde é possível desenvolver novas atividades económicas com energia limpa e com preços competitivos será um bom argumento para atrair investimento e emprego. A descarbonização da refinaria de Sines da Galp é um de muitos exemplos de como no terreno está a avançar a transição energética em Portugal. Esta semana a empresa, ao apresentar um lucro recorde, indicou que deverá receber no terceiro trimestre o eletrolisador de 100 MW para produzir hidrogénio verde em Sines (o equipamento virá do Dubai), e que permitirá em 2026 substituir 20% do "hidrogénio cinzento" (produzido a partir do gás natural) hoje consumido na refinaria. Em paralelo, a Galp também está a investir numa nova geração de biocombustíveis. Muito do investimento em descarbonização que Portugal tem para fazer na próxima década precisará de eletrões verdes. E implicará ocupar território com centrais solares, parques eólicos, novas centrais hidroelétricas com armazenamento (e a Iberdrola já se chegou à frente), parques de baterias e linhas de transporte de eletricidade. Tudo isso requer processos de licenciamento expeditos e capacidade dos decisores de compreender que, além dos negócios de que é feita a economia verde, e a par com as necessidades de preservar a biodiversidade, há na transição energética um bem comum que a todos nos diz respeito, pela qualidade do ar que respiramos, pela fatura que pagamos e pela capacidade para nos protegermos, enquanto país, dos choques de preços induzidos pelas potências mais ricas em combustíveis fósseis. A energia é mesmo uma arma. Será agora preciso usá-la com inteligência e agilidade. DESCODIFICADOR Dependência energética. É um indicador do grau de dependência do exterior do nosso sistema energético. Baixou de 66,7% em 2023 para 64,1% em 2024 (em 2022, ano de seca e de disparo dos preços do gás, chegou a 71,2%). É calculado dividindo o saldo importador (a diferença entre a energia que importamos e a que exportamos) pela soma do consumo de energia primária e da energia consumida pela navegação marítima e aviação internacional. Segundo a DGEG - Direção Geral de Energia e Geologia, no no passado, para aqueles 64,1% o Brasil contribuiu com 19,3 pontos percentuais, a Nigéria com 11,8 pontos, Argélia com 8,2, Estados Unidos com 6,5 e Espanha com 6,1. A nossa dependência do exterior na área da energia concentra-se no petróleo e gás, embora as importações de eletricidade de Espanha também tenham alguma importância. E VALE A PENA LER O estudo "Depois da crise energética: respostas políticas na Península Ibérica" é um trabalho de investigação de Ana Fontoura Gouveia, João Fachada, Gonzalo Escribano e Ignacio Arbeloa, que analisa como Portugal e Espanha lidaram com o choque energético de 2022, quando a invasão da Ucrânia pela Rússia fez disparar o preço do gás e levou a União Europeia a apelar a um esforço coletivo e acelerado de descarbonização. Os autores concluem que a Península Ibérica respondeu bem e está preparada para prosseguir o caminho de transição energética, mas não está suficientemente interligada com o resto da União Europeia (uma ideia que está longe de ser consensual no sector energético, havendo quem defenda que Portugal e Espanha terão vantagem em conservar para si os benefícios de poder produzir eletricidade mais barata que o centro da Europa, à boleia do excelente recurso solar). O estudo "Depois da crise energética: respostas políticas na Península Ibérica" pode ser lido aqui. Obrigado pela atenção que nos dispensou. Se tiver alguma dúvida, comentário ou reparo, pode enviar um e-mail para mprado@expresso.impresa.pt. A próxima edição da newsletter virá a 7 de agosto. Continuação de uma boa semana! Até breve! Miguel Prado Editor de Economia Miguel Prado