GREEN SAVERS - ADAPTAR O TRATAMENTO DE ÁGUAS RESIDUAIS A UM PLANETA EM CRISE
2025-07-16 21:06:03

A investigadora Rita Dias estudou dois métodos de tratamento de águas residuais com os quais acredita ser possível fazer uma gestão mais sustentável e mais eficiente de um recurso precioso cada vez mais escasso. IISem água não há futuro”. Esse foi o título de um discurso proferido em 2002 por Willem-Alexander, numa conferência na capital ganesa de Acra, para uma plateia de especialistas e profissionais do setor hídrico africano. ? atual Rei dos Países Baixos, que na altura era ainda herdeiro do trono, dizia que o mundo enfrentava uma crise hídrica, motivada não pela escassez, mas sim por uma crise de governança“. “Embora a água esteja, realmente, a tornar-se escassa em muitos lugares, à escala global, há água suficiente para fornecer segurança hídrica a todos mas só se mudarmos a forma como a gerimos”, alertava. Mais de 20 anos passaram, e o mundo está hoje a braços com uma crise hídrica muito mais intensa, mais complexa e com impactos muito mais intricados. Creio ser importante distinguir entre escassez de água e falta de água. A escassez deíne-se por um desequilíbrio entre a procura e a oferta, ou seja, as necessidades de água superam a capacidade que o recurso tem para, de forma sustentável, responder a essas necessidades. Consideremos um cenário hipotético: num dado ano choveu o que seria de esperar que chovesse, com o reabastecimento dos cursos de água, abaixo e acima do solo. Contudo, as necessidades de água são superiores, embora não haja exatamente falta de água. Há, por isso, escassez. Como tal, por vezes não se trata de um problema de disponibilidade de água, mas da forma como ela é gerida e explorada. Mas o que a Ciência onos diz é que muito provavelmente chegará a altura, se não chegou já, em que a escassez de água se combinará com a falta de água. Isto é, a água disponível será em menor quantidade, devido à irregularidade e menor frequ-ência das chuvas e à incapacidade dos solos para absorverem essa água, e as necessidades continuarão a aumentar. E para lá que parecemos estar a caminhar. A água é vida”, mas até quando? Recordo-me de, em pequeno, ouvir em documentários sobre o mundo natural os narradores dizerem que "a água é vida". Num planeta dominado pelos humanos em que a água não é bem gerida e em que os efeitos das alterações climáticas provocadas pela insustentabilidade dos modos de vida de alguns , a tornam cada vez menos abundante, a questão sobre a qual todos deveríamos refletir é "até quando?". A Terra é o "planeta azul", mas perto 97% desse azul é água salgada, com os restantes 3% a serem água doce da qual nós humanos e muitas outras formas de vida dependemos. No entanto, dessa pequena fração, apenas 1% está acessível, com o resto aprisionado onos glaciares, que, de ano para ano, vão derretendo para o mar. Confrontados com reduções da disponibilidade de água doce nos seus territórios, vários países estão a tentar aliviar a pressão sobre a água doce que ainda resta e alguns viram-se para a dessalinização, na esperança de compensar a falta de água em terra. Vamos a números. De acordo com uma equipa de cientistas da NASA (a agência espacial norte-americana), a quantidade total de água doce do planeta registou uma queda abrupta em maio de 2014 e os níveis nunca mais recuperaram. Dados de satélite mostram que entre 2015 e 2023 a quantidade média de água doce armazenada onos ambientes terrestres era da ordem dos 1.200 biliões de litros. Poderá ao leitor parecer um número astronómico, mas facto é que está abaixo da média do período entre 2002 e 2014. ãGUA De acordo com os cientistas, esse declínio global da água doce terá começado com uma "seca massiva” ono norte e centro do Brasil, que foi seguida por uma série de grandes secas" nas regiões da Australásia, Américas do Norte e do Sul, Europa e ãfrica. Eventos de aquecimento nas águas tropicais do Pacífico entre 2014 e 2016 catapultaram uma série de convulsões climáticas que afetaram as dinâmicas atmosféricas da Terra. Contudo, mesmo depois de esses fenómenos passarem, a quantidade de água doce ono planeta não recuperou. O aumento da frequência das secas levou à erosão e aridificação dos solos, tornando-os mais compactos, pelo que, mesmo quando chove, a água não se infiltra e não revitaliza os cursos subterrâenos e outras massas de água, escorrendo, ao invés, para o mar ou sendo de onovo evaporada. A urgência propiciada pela redução da disponibilidade global de água doce está refletida na Agenda 2030 para O Desenvolvimento Sustentável, lançada pelas Nações Unidas há uma década, que, em traços largos, pretende assegurar a disponibilidade e a gestão sustentável da água, ambição estabelecida ono sexto Objetivo do Desenvolvimento Sustentável (ODS 6). Contudo, dados da UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura) divulgados em fevereiro de 2024 mostram que "nenhuma das metas do ODS 6 parece estar ono bom caminho" Resultado: cerca de metade da população mundial enfrenta atualmente períodos, menores ou maiores consoante a região, de grave escassez de água todos os anos. Dado o incessante avanço da crise climática, tudo leva a crer que a situação se tornará ainda pior. E não se pense que o problema está só algures em terras distantes. A crise da água está aqui mesmo na Europa. Uma análise de janeiro deste ano, da Agência Europeia do Ambiente (AEA), aponta que a escassez de água afeta todos os anos algo como 30% do território da União Europeia (UE) e 34% da população do bloco regional. O fenómeno é mais fortemente sentido onos países do sul europeu, onde 30% da população vive em áreas em permanente stress hídrico e 70% em áreas com stress hídrico durante os meses mais quentes do ano. = A mesma análise prevê que, uma vez que tudo indica que as alterações climáticas se agravarão e que as secas serão mais intensas, frequentes e impactantes, em linha com uma tendência de agravamento que vem de 2010, uma redução na escassez de água até 2030 parece improvável“. Entre os países europeus mais afetados pela escassez hídrica Ono verão de 2022, Portugal surge em terceiro lugar, apenas atrás do Chipre e de Malta. A AEA explica que as condições de escassez costumam intensificar-se entre abril e setembro na maioria dos países da UE, em muito por causa de uma conjugação de fatores: tempo seco, fluxos hídricos reduzidos e aumento das captações para irrigar culturas, para efeitos de turismo e de recreação e para outras atividades socioeconómicas durante esses meses. Por cá, previsões apontam para uma redução de 6% da água doce disponível em Portugal até 2040, a par de um aumento de 26% dos consumos, prevendo-se, assim, um agravamento da escassez para daqui a cerca de 15 anos, que afetará mais fortemente o sul do país. Por tudo isso, é preciso procurar formas sustentáveis de se conseguir fazer uma melhor gestão de um recurso que se sabe que se tornará menos abundante e cuja recuperação será cada vez mais imprevisível. E isso poderá começar, desde logo, por uma maior circularidade da água, onde as estações de tratamento de águas residuais (ETAR) são peça fulcral. O papel das ETAR na preservação da água As ETAR poderiam ser descritas como os "rins” dos sistemas de distribuição de água das sociedades humanas, destacadamente em contextos urbanos. são elas que recebem a água usada por todos nós e que a tratam, removendo contaminantes, para que possa ser restituída à Natureza, minimizando riscos de poluição dos corpos de água e dos ecossistemas de que eles são parte, tanto em terra como Ono mar. E não é só a água que escorre pelos canos das nossas casas. Também as águas das chuvas que correm pelas ruas, as que saem das fábricas e as que emanam dos campos agrícolas acabam nessas centrais de tratamento. Cada um desses efluentes hídricos tem composi-ções distintas e, por isso, necessidades e exigências de tratamento diferentes. ã medida que a população humana aumenta e que cada vez mais pessoas se fixam em centros urbanos devido ao agravamento das condições ambientais e da diminuição de fontes de rendimento nas zonas rurais =, maior será a pressão exercida sobre as ETAR. Além disso, com o aumento de fenómenos climáticos extremos, como cheias e chuvas torrenciais, essas instalações de tratamento de água verão os limites das suas capacidades serem testados ao máximo. Na Europa, o desenvolvimento das ETAR nos últimos 20 anos tem sido fundamental para melhorar a qualidade das águas dos rios e, com isso, dos ecossistemas aquáticos e não só, bem como para salvaguardar a saúde humana. Processos mais eficazes de tratamento têm também permitido olhar para as águas residuais como potenciais novas fontes de água para outros fins que não o consumo humano, como a irrigação e a lavagem de estradas. Numa altura em que já é abundantemente evidente que a água doce é um recurso em declínio e que é preciso agir com urgência para preservá-lo, há que tudo fazer para otimizar os processos de tratamento das águas residuais para que seja possível dar-lhes outros usos e, dessa forma, aliviar a pressão sobre os cursos de água naturais, como rios e lagos. A dessalinização tem sido vista como uma forma de contornar o problema da escassez de água, mas, segundo dados do Programa das Nações Unidas para O Meio Ambiente (PNUMA), existe, a nível global, um potencial não explorado de reutilização das águas residuais de quase 320 biliões de litros por ano. Num relatório publicado em 2023, o PNUMA diz que esse potencial é mais de 1o vezes superior à capacidade global de dessalinização à altura. Como tal, as ETAR são protagonistas indispensáveis dos esforços que pretendem impulsionar uma gestão mais sustentável da água, com vista à sua conservação, para os humanos e para a Natureza, num planeta em transformação, e são fundamentais para proteger os ecossistemas e ajudar a travar a perda de biodiversidade, outra das grandes crises do nosso tempo. As águas residuais e a biodiversidade Quando as águas residuais são lançadas na Natureza sem o devido tratamento podem provocar danos ambientais e ecológicos catastróficos. Segundo a organização ambientalista internacional The Nature Conservancy, cerca de 80% das águas residuais de todo o mundo entram diariamente õno ambiente sem qualquer tratamento, ameaçando os ecossistemas e, claro, a saúde humana. Quando não são devidamente tratadas, as águas residuais que acabam em rios, lagos, estuários, praias e õno mar levam consigo nutrientes, matéria orgânica, microrganismo e substâncias tóxicas que não só deterioram a qualidade dos habitats, como também afetam os seres vivos que residem nesses ambientes aquáticos, levando, em algumas situações, a eventos de mortalidade em grande escala. Compostos químicos sintéticos que lançamos pelas nossas sanitas e lavatórios, provenientes, por exemplo, de medicamentos que tomamos ou de cosméticos que usamos, podem afetar os sistemas hormonais de peixes e invertebrados, alterar os seus comportamentos, reduzir o seu sucesso reprodutivo e, em última instância, ditar o desaparecimento de populações locais ou mesmo a extinção de espécies se se tratar de endemismos. O excesso de nutrientes nas águas residuais não tratadas, ou não tratadas devidamente, pode causar explosões de algas (fenómeno conhecido como eutrofização) que impedem que a luz solar chegue ao leito dos rios e lagos, afetando a vida vegetal e todas as cadeias alimentares, e podem reduzir a quantidade de oxigénio dissolvido na água, ameaçando a sobrevivência de todas as formas de vida. Um artigo publicado em junho de 2023 na revista Journal of Environmental Management salientava que, especialmente ao longo das últimas duas décadas, os regulamentos europeus sobre tratamento de águas residuais têm permitido aumentar a qualidade da água, reduzindo a quantidade de contaminantes que acabam õnos ecossistemas aquáticos. A efcácia do tratamento das águas residuais depende, sobretudo, das capacidades de que as ETAR dispõem, que permitem vários níveis de tratamento: o preliminar, onde são filtrados os resíduos de maiores dimensões; o primário, õno qual as partículas sólidas em suspensão são removidas pela ação da gravidade (decantação); o secundário, que consiste num tratamento biológico com uso de microrganismos para decomposição da matéria orgânica, que é removida numa segunda decantação; e o terciário, em que a água é desinfetada, eliminando bactérias, excesso de nutrientes e outros compostos. As águas residuais só podem ser reutilizadas em segurança para, por exemplo, regar culturas agrícolas, campos de golfe e espaços verdes, lavar ruas e passeios depois de terem passado por esse tratamento terciário. Estima-se que na Europa 69% da população esteja ligada a uma ETAR que usa algum tipo de tratamento terciário. Ainda assim, o estudo de 2023, liderado pela ecóloga Ioar de Guzman, da Universidade do País Basco, refere que mesmo as águas residuais altamente tratadas podem ter impactos õnos ecossistemas onde são descarregadas, com alterações na composição e estrutura das cadeias alimentares e na densidade e diversidade de comunidades de plantas e animais de água doce, especialmente invertebrados, como os insetos. Com base em experiências realizadas numa ribeira em Espanha, os in-vestigadores concluem que "os atuais procedimentos para tratar águas contaminadas podem não ser suficientes para preservar propriedades naturais das teias alimentares” e avisam que mais esforços podem ser necessários quando se lida com ecossistemas aquáticos sensíveis ou altamente valiosos". Assim se percebe que o tratamento das águas residuais feito pelas ETAR é uma importante peça do ciclo da água. Idealmente, não só permite promover a circularidade da água, reduzir desperdícios e aliviar a pressão sobre os sistemas naturais, como também proteger os ecossistemas aquáticos (em terra e õno mar), conservar e estimular a diversida-de de formas de vida que neles habitam e manter mecanismos naturais de filtração e purificação que beneficiam tanto humanos como não-humanos, numa ótica de interligação íntima entre a saúde dos humanos e do ambiente, a chamada “One Health" Ciente disso, uma investigadora portuguesa lançou-se õno estudo de novas formas de aumentar a eficácia do tratamento das águas residuais, a bem da conservação da biodiversidade, da preservação e gestão mais eficiente da água e da saúde humana. A ameaça escondida das hormonas esteroides No final de novembro do ano passado, Rita Dias defendeu a sua tese de doutoramento, com a qual espera poder contribuir não apenas para o avanço do conhecimento científico sobre o tratamento das águas residuais com vista à proteção da biodiversidade aquática e da saúde humana, mas também para tornar esses processos mais eficazes e, idealmente, mais eficientes. O trabalho da investigadora, associada ao pólo do Centro de Ciências do Mar e do Ambiente da Universidade Nova de Lisboa (MARE-NOVA) debruçou-se sobre a remoção de três tipos de hormonas esteroides (17a-etinilestr radiol,17, 17ß-estradiol e estrona) de águas residuais, que, quando lançadas na Natureza e mesmo em concentrações de nanogramas por litro, provocam alterações õno sistema endócrino e õno metabolismo dos organismos aquáticos, como peixes, afetando o seu desenvolvimento e a sua fertilidade e até alterando o seu sexo. Por isso, a presença dessas hormonas (que são conhecidas também como disruptores endócrinos pelos efeitos fisiológicos que têm) nas águas residuais é uma preocupação cada vez maior, não Só em termos ambientais e de conservação da biodiversidade, mas também ao nível da qualidade da água e da segurança e saúde humanas. Ao contrário de muitas imagens de rios e praias repletas de lixo, de mantos de algas e de camadas espessas de espuma que captam a atenção da imprensa e correm nas redes sociais, esta poluição não se vê", diz-nos a investigadora. Assim sendo, a sua remoção eficaz torna-se imperativa, para todas as formas de vida e para os ecossistemas dos quais elas fazem parte, incluindo nós. Desde logo, porque essas hormonas têm "uma característica muito alarmante", sublinha Rita Dias, que é o facto de se irem acumulando ao longo da cadeia alimentar. Ou seja, um pequeno peixe com essas hormonas Ono seu organismo é comido por um peixe maior que acabará por ficar com essas hormonas Ono seu próprio organismo. No limite, os peixes pescados para consumo humano podem conter essas hormonas acumuladas ao longo de vários níveis tróficos, que regressarão, mas em concentrações maiores, ao ponto de partida: nós. Algumas dessas substâncias são fruto da engenharia humana, como o etinilestradiol, que está presente, por exemplo, em pílulas contracetivas e é também usado em terapias de substituição hormonal, e não resultam, por isso, de processos naturais ou biológicos, mas o estradiol e a estrona são produzidos pelo organismo humano e são por ele excretados. Independentemente da origem, todas essas hormonas acabam nas águas residuais e, frequentemente, Onos rios, lagos e mares do mundo, com todos os problemas daí resultantes. Nos últimos 20 anos, tem vindo a registar-se uma presença cada vez maior desse tipo de substâncias nas águas residuais, levando ao surgimento da categoria de "poluentes emergentes”, na qual cabem todas aquelas que, como nos explica Rita Dias, têm efeitos Onos ecossistemas” mas que não são, na sua totalidade, ainda bem compreendidos” e não têm ainda um enquadramento legal bem definido. Fármacos, componentes de produtos de higiene pessoal, de pesticidas e de herbicidas, microplásticos e até bactérias ultrarresistentes são todos poluentes emergentes, que cada vez mais atenção recebem por parte da comunidade científica, organizações não-governamentais e legisladores por causa dos efeitos devastadores que podem ter Onos ecossistemas e na qualidade da água. , Essa maior presença deve-se, sobretudo, ao aumento da produção e consumo desses tipos de substâncias e também ao aumento da capacidade para detetá-las nas águas residuais. E, sabendo os efeitos que podem ter Onos organismos vivos, aumentam também as preocupações sobre os seus impactos e sobre a melhor forma de removê-las. Mas qual a relevância da presença dessas hormonas esteroides nas águas residuais quando falamos da escassez, da conservação e de uma gestão mais sustentável da água? Se o derradeiro objetivo das sociedades, movidas pela consciência de que é preciso proteger um recurso vital que se dissipa, é reduzir ao máximo os desperdícios e alcançar uma maior eficiência na sua gestão, então a proteção das fontes primárias de água os rios, os lagos, os riachos e as ribeiras , é fundamental. Não se pode esperar captar água com um mínimo de qualidade e segurança para consumo se a devolvemos à Natureza repleta de substâncias que, Ono fnal do dia, acabarão por voltar para nós com força redobrada. Seria a concretização do velho adágio "vira-se o feitiço contra o feiticeiro". e, de outra forma, fazer o que está ao Onosso alcance para tratar melhor o pouco que ainda temos. Ir mais longe no tratamento das águas residuais O facto de os poluentes emergentes, tal como as três hormonas esteroides que foram o alvo do estudo de Rita Dias, não estarem ainda devidamente enquadrados legalmente, faz com que, por agora, os sistemas de tratamento de águas residuais ainda possam não contemplar métodos que os removam antes de a água ser lançada na Natureza. "o que acontece é que estes compostos, muitas vezes, entram e saem das estações sem qualquer tipo de alteração”, diz-nos a investigadora. Mesmo as hormonas, que são hidrofóbicas e, por isso, tendem a ficar depositadas nas lamas criadas nas primeiras etapas do proces-So de tratamento, acabam, ainda assim, por aparecer sempre nas fases finais. A nova versão da diretiva europeia das águas residuais urbanas, aprovada Ono final do ano passado, prevê já uma maior exigência Ono tratamento das águas residuais, designadamente uma maior abrangência dos poluentes que têm de ser removidos nas ETAR. Até 2045, os Estados-membros têm de aplicar um tratamento adicional para remover poluentes emergentes, como os microplásticos e as substâncias per-e polifluoroalquiladas, os chamados "químicos eternos", exigindo um nível de tratamento quaternário. Regra geral, as ETAR têm dois níveis de tratamento, sendo que o nível terciário, da desinfeção, está já a ser usado, mas em menor escala e em apenas alguns locais para tratar água que será reutilizada, por exemplo, para irrigação de culturas e espaços verdes e lavagem de ruas. Por isso, esse nível quaternário, que visa já alguns poluentes emergentes, virá a ser, daqui a umas duas décadas, obrigatório ao nível da União Europeia. Mas já a pensar numa nova era do tratamento de águas residuais, quando a eliminação de poluentes emergentes passar a ser obrigatória, e não apenas um resultado colateral e pouco conhecido, Rita Dias lançou-se Ono estudo de dois métodos que considera serem mais sustentáveis para a remoção de hormonas esteroides, cada um com vantagens e desafios de implementação nas ETAR. A circularidade das lamas : e ácido peracético Um dos métodos de tratamento estudados por Rita Dias está relacionado com o uso de lamas produzidas nas estações de tratamento de água (ETA) para consumo, ou seja, onde a água é tratada depois de captada na Natureza e antes de ser encaminhada para as redes de distribuição e para as nossas torneiras. Anteriormente consideradas resíduos, essas lamas são uma massa orgânica que deriva da limpeza da água captada e são produzidas diariamente aos milhões de toneladas. Em algumas ETA em Portugal, tal como noutros países do sul da Europa, é, numa primeira fase, usado carvão ativado em pó, porque, devido às temperaturas mais elevadas do que noutras regiões, as captações de água podem ter uma maior presença de contaminantes, como cianobactérias, e por vezes doseia-se em excesso para garantir que todos são eliminados. Ao longo do processo de tratamento, o carvão ativado, tal como outros reagentes, acaba por ficar integrado nas lamas, pelo que o doseamento em excesso pode fazer com que as lamas produzidas nas ETA possam ainda ter potencial para atuarem noutras fases de descontaminação da água, sendo hoje consideradas como um material que pode ser usado Ono tratamento das águas residuais nas ETAR. Dessa forma, Rita Dias quis perceber se o que era um resíduo poderia passar a ser um material com uma nova vida, tornando os processos de tratamento mais baratos, porque não é preciso adquirir outros produtos, e ambientalmente mais sustentáveis, com menos um resíduo com o qual ter-se-á de lidar. A confirmar-se, isso significaria que as lamas podem ser utilizadas õno tratamento de águas residuais e não ser apenas um subproduto sem utilidade. E foi isso precisamente que se verificou. Em experiências, a investigadora percebeu que as lamas com carvão ativado tinham capacidade para remover contaminantes da água, sem que tivessem sido sujeitas a qualquer outro tratamento: como saíram das ETA, foi como foram usadas no tratamento das águas em ETAR. Além de promover a circularidade das lamas, este processo tem ainda outra vantagem. ? carvão ativado também é usado para tratar as águas residuais nas ETAR e provém de fontes não renováveis, pelo que a sua extração contempla riscos ambientais e para a saúde humana õnos locais onde ela é feita. Por isso, reutilizar as lamas das ETA para remover contaminantes em vez de carvão ativado puro reduz não apenas a pegada carbónica do sistema de tratamento de águas como também ajuda a mitigar Os seus impactos ambientais e sociais negativos, com uma série de benefícios que se estendem muito para lá das paredes das estações de tratamento. Há, contudo, um "senão". As lamas com carvão ativado não têm uma capacidade infinita para absorver contaminantes, pelo que chega uma altura em que é preciso limpá-las, ou com temperaturas acima dos 500 graus Celsius ou com produtos muitos ácidos. "Ambos OS tratamentos são muito caros", reconhece Rita Dias, pelo que esse é um "desafio" na gestão desse material. Mesmo quando são limpas, as lamas não podem ser usadas indefinidamente, pelo que, inevitavelmente, õno fm da sua vida útil, terão de ser descartadas, por exemplo, enviando para aterros sanitários. Ainda assim, a segunda, terceira ou quarta vida que é dada às lamas permite reduzir a dimensão de "um problema para as entidades gestoras de água”, salienta a cientista. ? outro método de tratamento de poluentes emergentes nas águas residuais estudado por Rita Dias õno seu doutoramento trata-se de um processo de oxidação avançada com uso de ácido peracético. De forma simples, esse pro-duto é uma mistura de água oxigenada (peróxido de hidrogénio), ácido acético e água, e é considerado um desinfetante potente com menos impacto õno ambiente do que outros produtos usados para os mesmos fins, como o cloro, que podem gerar subprodutos nocivos, que são depois levados pelas águas residuais para os ecossistemas. Por exemplo, o ácido acético é o componente principal do vinagre de mesa. Numa altura em que se procuram alternativas para tornar mais ambientalmente seguras as águas residuais tratadas que são descarregadas õnos ecossistemas, com vista a um alinhamento cada vez maior entre a saúde humana e a saúde da Natureza, o ácido peracético surge como uma possível solução, como um reagente menos agressivo para o ambiente e para os ecossistemas aquáticos", refere a investigadora. Uma das grandes vantagens deste método é que, se se quisesse, podia começar a ser usado já amanhã nas ETAR, pois é comercializado em forma líquida, tal como o cloro, por isso, seria apenas substituir um pelo outro. O ácido peracético tem uma dupla valência. ?o passo que as lamas com carvão ativado "agarram" os poluentes (processo conhecido como adsorção), esse reagente atua contra microrganismos patogénicos, que podem pôr em risco a saúde dos ecossistemas (e, em última instância, também a nossa, porque é neles que captamos a água que depois consumimos) e também oxida os compostos poluentes, destruindo-os por completo. O processo da adsorção em lamas, diz-nos a investigadora, é um tema que tem vindo a crescer na comunidade científica õnos últimos anos", mas é ainda "muito experimental". ? conhecimento sobre o ácido peracético, por outro lado, já está mais consolidado, sendo, inclusivamente, já usado õnos Es-tados Unidos da América como substituto do cloro õno tratamento de águas residuais. Por cá, nenhum desses dois métodos é ainda usado. Existem já outras tecnologias para tratamento de poluentes emergentes, como a ozonização, o uso de membranas de nanofiltração e osmose inversa e a adsorção com carvão ativado virgem (e, por isso, não sustentável), mas implicam custos de implementação e também de operação muito superiores, o que em nada contribui para a sustentabilidade financeira do setor das águas e aumenta os custos aportados aos consumidores. Por isso, estes dois métodos estudados por Rita Dias podem ser os mais eficientes ono que toca ao equilíbrio entre impactos ambientais, eficácia de descontaminação e custos financeiros. Otimizar a segurança da água tratada para proteger um recurso vital Com toda esta investigação, Rita Dias quis aprofundar o conhecimento existente sobre métodos de desinfeção segura da água, não só relativamente aos poluentes que estão já previstos na lei, mas também àqueles que em breve terão de começar a ser monitorizados. e, como onos diz, mostrar que as águas residuais tratadas podem ser reforçadas como uma nova origem de água” para usos que não os de consumo humano, maximizando a sua qualidade e segurança com métodos de tratamento eficazes, com menos impactos negativos onos ecossistemas aquáticos, sem riscos para a saúde pública e com menos custos associados. Assim, ao otimizar o tratamento de águas residuais para uso em lavagem de ruas, rega de espaços verdes nas cidades e campos agrícolas, será possível reservar a água de maior qualidade exclusivamente para o consumo. Numa altura em que a água é um recurso cada vez mais escasso e, por isso, valioso, lavar estradas com água potável é nada mais do que um contrassenso. Estima-se que atualmente apenas 1,2% das águas residuais tratadas são reutilizadas em Portugal para esse tipo de fins. Uma maior aposta na reutilização das águas residuais tratadas reduzirá a pressão sobre os recursos hídricos e, dessa forma, permitirá uma maior disponibilidade de água para consumo. Ao apostar numa água residual tratada, com todas as características de qualidade que se coadunam com os objetivos previstos na lei, estamos a retirar uma grande fatia do consumo de água", lembra Rita Dias, pelo que, nesse contexto, consegue-se logo um alívio sobre o recurso. Dessa forma, as centrais de dessalinização, que consomem energia, que custam dinheiro a construir e a operar e que têm problemas ambientais nomeadamente ao nível das descargas de salmoura (que resulta da retirada do sal da água marinha), devem ser encaradas como abordagens para situações muito específicas e pontuais, e não como uma solução para todos os fins. e certo que as necessidades de novas fontes de água têm de ser analisadas caso a caso e região a região. Mas o que é preciso fazer, acima de tudo, é garantir que estamos a tirar o máximo partido de um recurso abundantemente disponível , as águas residuais e considerar soluções mais dispendiosas e mais complexas para situações em que só as águas residuais tratadas não bastam. Embora o uso de lamas com carvão ativado ainda esteja a ser amplamente debatido ono seio da comunidade científica e existam ainda muitas "pontas soltas” sobre como melhor implementar esse método, o ácido peracético, por outro lado, está apto a ser usado nas atuais ETAR, sem que isso exija grandes esforços financeiros ou operacionais. ? que Rita Dias onos mostra, com a sua investigação, é que é possível fazer mais e melhor ono que toca ao tratamento de águas residuais, tanto para a proteção dos ecossistemas, nesta era de crise da biodiversidade, como para a preservação de um recurso essencial à vida, a água, sem a qual as sociedades humanas (e tantas outras) muito provavelmente colapsarão. e aliar a conservação da Natureza à adaptação humana a um planeta cada vez mais quente, com cada vez mais pessoas, cada vez mais necessidades hídricas e, na melhor das hipóteses, com a mesma quantidade de água doce disponível e acessível. "Num país como o nosso, que tem escassez, a água é primordial ao nível da atuação", sentencia a investigadora, acrescentando que "temos de investir a vários níveis", como ono transporte, com a redução das perdas, e na "gestão muito mais articulada deste recurso”. 54 AGUA ADAPTAR O TRATAMENTO DE AGUAS RESIDUAIS A um PLANETA EM CRISE A investigadora Rita Dias estudou dois métodos de tratamento de águas residuais com os quais acredita ser possível fazer uma gestão mais sustentável e mais efi- II Previsões apontam para uma redução de 6% da água doce disponível em Portugal até 2040, a par de um aumento de 26% dos consumos, prevendo-se, assim, um agravamento da escassez para daqui a cerca de 15 anos. II Ao apostar numa água residual tratada, com todas as características de qualidade que se coadunam com os objetivos previstos na lei, estamos a retirar uma grande fatia do consumo de água. II A dessalinização tem sido vista como uma forma de contornar o problema da escassez de água, mas, segundo dados do Programa das Nações Unidas para O Meio Ambiente (PNUMA), existe, a nível global, um potencial não explorado de reutilização das águas residuais de quase 320 biliões de litros por ano. II Ao contrário de muitas imagens de rios e praias repletas de lixo, de mantos de algas e de camadas espessas de espuma que captam a atenção da imprensa e correm nas redes sociais, a poluição por hormonas esteroides “não se vê”. Filipe Pimentel Rações