SREBRENICA - TRINTA ANOS DEPOIS, A BÓSNIA É UM PAÍS À ESPERA DE TUDO
2025-07-11 21:05:14

Trinta anos depois, a Bósnia é um país à espera de tudo Genocídio de Srebrenica foi cometido há 30 anos. Todos os anos são sepultadas vítimas, cujos corpos foram encontrados em valas comuns. Este ano não será excepção Trinta anos depois de terminada a guerra, a Bósnia-Herzegovina mantém-se num limbo. A ameaça de secessão alimentada pelo Presidente da República sérvia da Bósnia contribui para destabilizar o país, com as suas alusões constantes à fusão com a mãe Sérvia, e o seu partido, o SNSD, bloqueia algumas das reformas que Bruxelas exige até à sua integração. Para tornar tudo isto ainda mais estranho e complexo, Milorad Dodik visita frequente do Kremlin foi condenado, em Fevereiro, a um ano de prisão, por se recusar a aplicar decisões do Alto Representante, o que é considerado crime, e proibido de exercer cargos políticos durante seis anos. Dodik recorreu. Entretanto, recusava-se, inclusive, a depor perante o Ministério Público e andava sob escolta, para não ser intimado e detido. O político sérvio-bósnio compareceu, voluntariamente, na última sexta-feira, no Ministério Público, e a sua ordem de detenção foi suspensa. A Bósnia está dividida entre uma República Srpska, de maioria sérvia, e uma federação croata-muçulmana e encontra-se sob a supervisão de um Alto Representante, Christian Schmidt. O país é governado por três presidentes rotativos, em representação de cada uma das principais comunidades (muçulmana, sérvia e croata), com semelhanças com o modelo da federação jugoslava após a morte do marechal Josip Broz Tito. Este modelo resultou do acordo de Dayton, no Ohio, EUA, em Novembro de 1995, assinado no mês seguinte, em Paris, que pôs termo a esta segunda das quatro guerras balcânicas que desfizeram a Jugoslávia. Ao Alto Representante para a BósniaHerzegovina cabe acautelar a aplicação civil do acordo e representar os países reunidos numa estrutura chamada Conselho de Implementação da Paz. Igor Stojanovic, vice-presidente do país, diz ao PÚBLICO que a “Bósnia e Herzegovina continua a ser um Estado multiétnico e é precisamente essa diversidade que deve ser preservada e reforçada. A reconciliação é um processo a longo prazo, mas a vida real nas comunidades mostra que as pessoas estão prontas para avançar juntas. A política deve finalmente acompanhar essa realidade”, observa o também membro do SDP, o Partido Social-Democrata, que tem uma base multiétnica, o ramo bósnio da antiga Liga dos Comunistas da Jugoslávia. Um caso raro. Stojanovic entende que há uma discrepância entre o discurso político mais belicoso e a vontade de concórdia da população e que, apesar de tudo, há colaboração institucional. “Por exemplo, em Junho de 2023, os governos da Federação da Bósnia-Herzegovina e da República Srpska realizaram uma sessão conjunta para discutir questões que se enquadram na jurisdição das entidades e coordenar abordagens para assuntos de interesse comum. Embora existam desacordos políticos, muitas vezes amplificados pelos meios de comunicação social ou por certos líderes, é importante reconhecer que estes não equivalem a duas Bósnias.” Adnan Cerimagic, analista sénior do European Stabillity Initative, um think thank sediado em Berlim, “independente e sem fins lucrativos”, e que se propõe “lutar por uma Europa mais justa”, não tem dúvidas quanto à multietnicidade do país e quanto à crescente reintegração das várias comunidades nas escolas ou nas empresas. Actualmente, afirma Cerimagic, “metade dos croatas-bósnios vivem em municipalidades onde não são maioria, e 200 mil não-sérvios vivem na República Srpska. Você sabe”, prossegue o analista bósnio, radicado na Alemanha, “que, nos anos 90, a narrativa era garantir que não existiam minorias. Havia a ideia de que era necessário estar onde os seus estavam em maioria e que não havia lugar para a minoria”. Pascoal Pereira, especialista em Relações Internacionais e professor da Universidade Portucalense do Porto, aponta um paradoxo que resultou do acordo de Dayton. Por um lado, impôs um “modelo de convivência multiétnica” e, por outro, “congelou as relações interétnicas desde então”. “Ao invés de incentivar um espaço político comum e de uma percepção bósnia única”, prossegue, este “modelo de convivência estabeleceu e consolidou partidos de base étnica”. Pascoal Pereira entende que a secessão dos sérvios-bósnios pode ser um objectivo a longo prazo dos seus líderes, mas acrescenta: “Creio que é mais um discurso utilizado, sobretudo, com propósitos negociais, para instrumentalizar e usar a ameaça de secessão como forma de pressão em negociações políticas, do que uma prioridade imediata.” Valas comuns A ameaça de secessão da República Srpska reaviva a memória da guerra da Bósnia, o mais sangrento dos con-flitos que desagregaram a Jugoslávia e devastaram os Balcãs entre 1991 e 1999. A guerra provocou mais de 100 mil mortos, dois milhões de deslocados Portugal recebeu refugiados bósnios nesses anos , 35 mil desaparecidos, o cerco de cidades como Sarajevo (o mais longo se sempre) e de enclaves muçulmanos como Gorazde e o genocídio de Srebrenica. Precisamente há 30 anos, tropas sérvias bósnias lideradas por Ratko Mladic assassinaram mais de oito mil homens e rapazes pelo simples facto de estes serem muçulmanos, naquele que o Tribunal Penal Internacional de Haia considerou como o primeiro genocídio na Europa do pós-guerra. Todos os anos, no memorial de Potocari, junto a Srebrenica, transformado em monumento funesto, homenageiam-se as vítimas e revivem-se esses anos bárbaros. Todos os anos são sepultadas vítimas cujos corpos foram encontrados em valas comuns. Hoje não será excepção. Os restos morais de sete vítimas, descobertos em valas comuns, serão sepultados aqui. Srebrenica não passou despercebida pelas boas e más razões. O genocídio foi recordado esta segunda-feira pelo Parlamento Europeu e, no dia seguinte, pela Assembleia Geral da ONU. O seu secretário-geral, Antó- nio Guterres, prestou tributo às vítimas e ao grupo das Mães de Srebrenica, que lutaram pelo reconhecimento interno e internacional da atrocidade cometida há três décadas. No mesmo dia, o Parlamento bósnio organizou uma sessão para assinalar a efeméride, com apelos à responsabilização e reconciliação. Como habitualmente, este ano também haverá a “marcha pela paz”, entre a aldeia de Nezuk, para onde fugiram muitos sobreviventes do massacre, e Srebrenica, a cerca de 100 quilómetros. Aquela que era uma localidade de maioria muçulmana da Bósnia oriental, considerada uma zona segura, sob protecção dos capacetes azuis dos Países Baixos, foi palco da maior atrocidade desta guerra. Este episódio hediondo manchou a imagem das forças de paz das Nações Unidas, tal foi a passividade com que as chefias dos capacetes azuis assistiram à mortandade. Anos mais tarde, Mladic seria condenado a prisão perpétua. As barbaridades desta guerra comoveram o mundo e as opiniões públicas obrigaram os governos a intervir. Os EUA liderados por Bill Clinton e a NATO colocariam um ponto final no conflito, tal como fariam mais tarde no Kosovo, bombardeando as posições dos sérviobósnios e desnivelando o desfecho a favor de croatas e bosníacos (o termo passou a designar, a partir de 1993, os bósnio-herzegovinos de tradição muçulmana). A paz acabou por ser imposta e a diplomacia portuguesa teve um papel neste processo, através do embaixador José Cutileiro e da presidência da União Europeia (UE). O que saiu do acordo de Dayton é, basicamente, o que ainda agora se mantém em vigor. Esta espécie de protectorado internacional pode não ter um Dayton 2 (a actualização do acordo de paz e de organização institucional está moribundo), mas ainda precisa do Dayton 1 para se organizar. “É essencial fortalecer as instituições estatais capazes de prevenir e sancionar todos aqueles que ousarem desafiar a ordem constitucional do país. A presença contínua da comunidade internacional através do Gabinete do Alto Representante e do Conselho de Implementação da Paz continua a ser um factor estabilizador crucial”, diz o vice-presidente Igor Stojanovic, numa alusão ao líder sérvio-bósnio Milorad Dodik. Independência Era um fim-de-semana de Abril e a Bósnia entrou em guerra Amílcar Correia, em Sarajevo Cerimagic prefere um Alto Representante menos activo e com menos poderes, e um país capaz de fazer reformas em sectores como o da Justiça, que abram as portas da UE aos bósnios. O analista acrescenta que Dodik tem prejudicado o país com a sua atitude de bloqueio e que as circunstâncias pioraram com a eleição de Trump, a invasão da Ucrânia e as divisões entre os Estados-membros da UE.com a simpatia de Orbán e de Putin, “o que parece é que Dodik se tornou mais forte do que era antes”, o que radicaliza o seu discurso. Pascoal Pereira concorda com as semelhanças entre os três, mas desvaloriza a influência russa na região, pela dificuldade de Moscovo em substituir Bruxelas como factor de desenvolvimento. O que pode acontecer de pior com a demora na adesão à UE é um “cansaço das duas partes”. Em 2004, Cerimagic queria aprender alemão e foi estudar para a Áustria. Estava convencido de que voltaria ao seu país “quando terminasse os estudos e que a Bósnia já estaria, então, na UE”. Cerimagic terminou os estudos e aprendeu alemão, mas a Bósnia ainda não saiu do limbo em que estava. Este é um país que continua à espera de tudo. Em particular da UE. Aguerra estalou, definitivamente, no primeiro fimde-semana de Abril. Atiradores sérvios encapuzados dispararam sobre uma multidão que se manifestava, nas ruas de Sarajevo, a favor de uma independência pacífica, da reconciliação dos líderes nacionalistas (muçulmanos, croatas e sérvios) e o fim dos confrontos étnicos. Morreram seis pessoas, dez ficaram feridas, nesses dois primeiros dias. O Presidente da Bósnia-Herzegovina, Alija Izetbevovic, muçulmano, declarou o estado de emergência em cinco cidades e mobilizou reservistas da polícia. Croatas e muçulmanos desejavam a independência, os sérvios liderados por Radovan Karadzic defendiam a permanência na Jugoslávia. Em Kupres, a oeste de Sarajevo, o que restava do Exército jugoslavo, juntamente com sérvios-bósnios armados, combatia contra milícias croatas. Os confrontos já tinham feito centenas de mortos. Os três principais líderes Izetbegovic, o sérvio Karadzic e o croata Miljenko Brkic encontraram-se na sede da televisão, lançaram apelos ao fim dos confrontos, mas em vão. Eles eram os principais instigadores do nacionalismo que varreu a Bósnia-Herzegovina nesta terceira guerra dos Balcãs na década de 1990. Depois da independência da Eslovénia, após uma curta guerra de dez dias, e da independência da Croácia, após um longo e traumático conflito, a barbárie estava a chegar à Bósnia. O caos desse fim-de-semana iria prolongar-se ao longo de três anos e meio. Caixa de Pandora A morte do marechal Tito, figura de proa dos vitoriosos partizans na Segunda Guerra Mundial, em 1980, abriu uma caixa de Pandora. A Primeira Guerra Mundial tinha conduzido à primeira Jugoslávia (que significa união dos eslavos do Sul), liderada pela monarquia sérvia. Da Segunda Guerra Mundial nasceria a república federal socialista. Para não se tornar um vassalo de Estaline e do Pacto de Varsóvia, Tito optou pela equidistância entre as duas grandes potências da Guerra Fria e criou o movimento dos países não-alinhados. Filho de uma eslovena e de um croata, o marechal todo-poderoso contornou os traumas da Segunda Guerra Mundial, na qual os croatas foram responsáveis pelo massacre de sérvios durante o regime fascista ustashe de Ante Pavelic e impôs a nova realidade. A violência étnica prosperou grandemente na Bósnia-Herzegovina. Numa fase inicial, as três comunidades combateram entre si, mas croatas e muçulmanos bósnios juntaram-se para enfrentar os irmãos sérvios. A propósito, e com muita pertinência, o filósofo francês Edgar Morin chamou-lhe os fratricidas. A Bósnia era a república mais multiétnica da Jugoslávia, que foi composta, para além desta, pela Eslovénia, Croácia, Sérvia, Montenegro e Macedónia do Norte. O seu colapso foi o falhanço de uma ideia de convivência pacífica e o irromper do ódio étnico e do nacionalismo. De um momento para o outro, os campos de concentração estavam de volta à Europa, demonstrando que a lição de Auschwitz tinha sido esquecida. De um momento para o outro, uma cidade como Sarajevo era sujeita a um cerco de 1425 dias, o mais longo da história, com os seus habitantes a serem condenados a viver sem água, gás, electricidade e a serem mortos quando saíam de casa para procurar comida ou lenha, por snipers sérvios que disparavam do alto das montanhas. Passaram três décadas e a reconciliação está por fazer em definitivo. Uma visão sobre a actualidade A Bósnia deve ser “governada com base na cidadania e não na etnia” Igor Stojanovic Passaram 30 anos e o vice-presidente da Bósnia-Herzegovina não acredita que a “guerra seja uma opção viável para ninguém” Entrevista Amílcar Correia, em Sarajevo As memórias da guerra (1992-1995) estão demasiado vivas entre quem assistiu ao vírus étnico que varreu o país nessa década. Os acordos de paz de Dayton, que acabaram com a guerra, em 1995, ditaram um Estado constituído por duas entidades: uma federação croata-muçulmana e uma república sérvia e uma estrutura central rotativa entre as três principais comunidades do país. Os dirigentes sérvios-bósnios nunca deixaram de esgrimir a ameaça de secessão, o que implica sempre o receio de um novo conflito. As relações institucionais neste país, que pretende aderir à União Europeia, são tudo menos pacíficas. O Presidente da República Srpska, Milorad Dodik, visita frequente de Putin, foi condenado a um ano de prisão e proibido de exercer cargos políticos por se recusar a implementar as decisões do alto-representante, a quem cabe supervisionar o acordo de paz. Nesta entrevista, Igor Stojanovic, de ascendência sérvia e membro do multiétnico Partido Social Democrata da Bósnia-Herzegovina (SDP BiH), considera que “existe mais tensão no discurso político do que entre as pessoas comuns” e que a “Bósnia-Herzegovina sempre foi e continua a ser um Estado multiétnico”. O sistema de governo tripartido que resultou dos acordos de Dayton é eficiente e funcional ou deveria ser revisto? Os acordos de Dayton conseguiram pôr fim à guerra e a Constituição da Bósnia-Herzegovina está anexada ao próprio acordo. Embora a Bósnia-Herzegovina tenha feito alguns progressos nas últimas três décadas, esses progressos não são suficientes. Construímos instituições estatais, mas não as tornámos suficientemente fortes ou independentes. O que a Bósnia-Herzegovina mais precisa é de instituições robustas, profissionais e politicamente independentes especialmente um poder judicial pronto a defender a Constituição e a sancionar aqueles que a violam, independentemente da filiação política. Infelizmente, o sistema actual permite que um único partido político bloqueie processos fundamentais, incluindo o trabalho do Parlamento. É exactamente isso que estamos a testemunhar hoje com as acções da Aliança dos Sociais-Democratas Independentes (SNSD), liderada por Milorad Dodik. Tal sistema permite que interesses partidários estreitos ou mesmo pessoais paralisem todo o Estado. Apoio, veementemente, um modelo de governação baseado na cidadania, em vez de um modelo baseado na etnia. É importante salientar que o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos tem repetidamente decidido que a Constituição da Bósnia-Herzegovina inclui disposições discriminatórias especialmente contra aqueles que não pertencem aos chamados “povos constituintes”. Ainda se mantém a necessidade de um alto-representante internacional? Como avalia o papel de Christian Schmidt? Sim, acredito que ainda há essa necessidade. O Gabinete do Alto-Representante (OHR) é o principal intérprete do Acordo de Paz de Dayton e é responsável por supervisionar a sua implementação civil. Embora não seja uma solução ideal a longo prazo, a realidade política no país infelizmente ainda exige uma presença internacional para salvaguardar a paz, a estabilidade e a ordem constitucional. O nosso objectivo deve ser construir instituições estatais capazes de funcionar de forma independente e eficaz. Isto inclui a capacidade de resolver disputas e de chegar a acordos sem arbitragem internacional. Acredito, firmemente, no diálogo interno, na responsabilidade política e no compromisso entre os líderes locais. No entanto, até atingirmos esse nível de maturidade, o papel do alto-representante embora limitado continua a ser uma salvaguarda necessária contra o retrocesso constitucional, as divisões étnicas e as ameaças à soberania e integridade territorial da Bósnia-Herzegovina. Há um risco de secessão da Bósnia e de uma nova guerra? As autoridades da Republika Srpska (RS) defendem abertamente a secessão. No entanto, tal resultado não é legalmente possível. De acordo com a Constituição, a RS é uma entidade que só pode existir dentro da estrutura soberana do Estado da Bósnia-Herzegovina e de nenhuma outra forma. Não acredito que a guerra seja uma opção viável para ninguém. As feridas da guerra de 1992-1995 ainda estão frescas para todos nós que a vivemos. Embora as tensões estejam a ser deliberadamente provocadas principalmente por Milorad Dodik e o seu círculo íntimo , estou convencido de que não haverá uma escalada para um conflito aberto. O que estamos a testemunhar não é um verdadeiro impulso para a independência, mas sim uma estratégia política destinada a manter o poder e permitir o uso indevido dos recursos públicos. As acções da liderança da RS são motivadas por interesses pessoais e financeiros, não pela vontade do povo. O seu objectivo é controlar os fundos públicos, manipular as empresas públicas e proteger-se da responsabilização mesmo que isso implique desestabilizar o país. O povo independentemente da sua origem étnica quer paz, empregos, cuidados de saúde funcionais, um sistema de pensões estável, melhores infra-estruturas e uma economia em crescimento. A escalada das tensões e as provocações nacionalistas apenas aprofundam o medo, atrasam as reformas e bloqueiam o progresso de que os nossos cidadãos precisam e merecem desesperadamente. Trinta anos depois do fim da guerra e do genocídio de Srebrenica, considera que a Bósnia está mais reconciliada e que é um Estado multiétnico? A Bósnia-Herzegovina sempre foi e continua a ser um Estado multiétnico. Só pode existir como tal. A guerra da década de 1990 trouxe imenso sofrimento: assassinatos em massa, perseguição e a destruição de grande parte do país. Essas cicatrizes ainda são visíveis na nossa sociedade e na nossa demografia. Hoje, a entidade da RS é, predominantemente, habitada por sérvios, que representam cerca de 81,5% da população local. Em contraste, a Federação da Bósnia e Herzegovina é maioritariamente bósnia e croata, enquanto os sérvios representam apenas cerca de 2,55% da sua população. Apesar disso, a vida quotidiana nas comunidades mistas é, na sua maioria, pacífica e cooperativa. As tensões nacionais são raras no terreno. Na verdade, há muito mais exemplos de coexistência e solidariedade do que de divisão ou hostilidade. Os poucos incidentes que ocorrem são isolados e geralmente resolvidos a nível local. Existe mais tensão no discurso político do que entre as pessoas comuns e isso, por si só, é encorajador. Podemos dizer que há duas Bósnias, uma sérvia e outra croata-muçulmana e que ambas têm diferenças irreconciliáveis? Não o que existe é um único Estado, reconhecido internacionalmente, composto por duas entidades, a Federação da Bósnia-Herzegovina e a Republika Srpska, juntamente com o distrito de Brcko, que é uma unidade administrativa autónoma sob a soberania do Estado. De acordo com a Constituição, as entidades têm as suas próprias competências, mas o Estado mantém autoridade exclusiva em áreas-chave, tais como a da defesa e a das Forças Armadas, os negócios estrangeiros, a política monetária, a tributação indirecta e o sistema eleitoral. As entidades enviam os seus representantes para instituições a nível estatal e participam nos processos de tomada de decisão a nível nacional. Apesar das tensões políticas, existe cooperação institucional entre as entidades. O país funciona como um único Estado, embora com uma estrutura interna complexa. A chave para avançar reside no diálogo, no respeito constitucional e no reforço das instituições estatais, capazes de garantir a igualdade, a funcionalidade e o progresso partilhado. A Rússia exerce influência junto da minoria sérvia para destabilizar a Bósnia? A Rússia exerce uma influência significativa sobre os líderes políticos e as instituições da RS. Milorad Dodik, o presidente da entidade, visitou Moscovo várias vezes só este ano e reuniu-se, pessoalmente, com Vladimir Putin. Esta relação próxima sublinha a profundidade do envolvimento russo nos assuntos internos da Bósnia. A posição da Rússia em relação à Bósnia-Herzegovina é mais claramente visível nas sessões do Conselho de Segurança das Nações Unidas, onde apoia consistentemente a retórica e as políticas separatistas promovidas por Dodik. Ao apoiar tais narrativas e ao interferir nos assuntos internos da Bósnia e Herzegovina, a Rússia contribui directamente para a desestabilização do país. Além da Rússia, devo também destacar o papel da Sérvia. Embora as autoridades sérvias expressem, frequentemente, o seu apoio formal à soberania e à integridade territorial da Bósnia-Herzegovina, as suas acções muitas vezes contam uma história diferente. O envolvimento político nos assuntos da RS e a falta de cooperação em questões jurídicas contradizem as suas posições declaradas. É particularmente preocupante que muitas pessoas indiciadas ou condenadas por crimes de guerra tenham encontrado refúgio na Sérvia, que continua a recusar a sua extradição. Os EUA foram fundamentais no final da guerra de 1992-1995 e no processo de paz. Qual é a relação da Bósnia com a Administração Trump? Os EUA são o nosso aliado estratégico e parceiro de política externa mais importante. Desde a assinatura do Acordo de Paz de Dayton, em 1995, o apoio dos EUA tem permanecido forte e baseado em princípios independentemente de o governo ser liderado por democratas ou republicanos. Durante o Governo de Donald Trump, certos compromissos diplomáticos continuaram, e ficámos encorajados com a reacção do secretário de Estado Marco Rubio, que condenou claramente as políticas separatistas de Milorad Dodik e reafirmou o apoio dos EUA à soberania e integridade territorial da Bósnia-Herzegovina. É também importante destacar que Milorad Dodik foi alvo de sanções dos EUA durante o primeiro mandato de Trump e que essas sanções permanecem em vigor. Acredita que os progressos que a Bósnia tem feito lhe permitirão aceder à União Europeia? Infelizmente, devido a contínuas desavenças políticas, o país ainda não cumpriu as obrigações estabelecidas pela União Europeia. A adesão plena continua a ser o nosso objectivo estratégico. Neste momento, a UE está a solicitar que a Bósnia-Herzegovina adopte duas leis fundamentais a Lei sobre o Tribunal da Bósnia-Herzegovina e a Lei sobre o Conselho Superior Judicial e Procurador e que nomeie um negociador-chefe para lançar, formalmente, as negociações de adesão. Lamentavelmente, estas leis ainda estão pendentes no processo parlamentar, devido a bloqueios políticos, que continuam a atrasar o progresso. Sem a sua adopção, o país não pode avançar para a próxima fase de integração. Espero, sinceramente, que os actores políticos da Bósnia-Herzegovina demonstrem a consciência e a responsabilidade necessárias para concluir estas reformas não por causa das instituições, mas pelas pessoas que vivem neste país e merecem um futuro europeu. Cronologia 5 de Abril de 1992: começa o cerco de Sarajevo quando as forças servo-bósnias bloqueiam a capital. 6 de Abril de 1992: a Comunidade Europeia aceita, formalmente, a independência da Bósnia e Herzegovina. Os sérvios bósnios declaram a sua própria república, a República Sérvia da Bósnia e Herzegovina (mais tarde República Srpska). É o início oficial da guerra. 11 a 13 de Julho de 1995: mais de 8 mil muçulmanos bósnios são assassinados por tropas sérvias comandadas por Ratko Mladic. O Tribunal Penal Internacional classificou esta atrocidade como genocídio, o primeiro desde a Segunda Guerra Mundial. 14 de Dezembro: o acordo de Dayton é assinado em Paris, pondo termo à guerra e criando um país assente em duas entidades: a federação croato-muçulmana e a república dos sérvios-bósnios. 15 de Fevereiro: Bósnia-Herzegovina pede adesão formal à União Europeia. 15 de Dezembro de 2022: União Europeia atribui à Bósnia o estatuto de país candidato a Estado-membro. A Bósnia mostra que a reconciliação é um processo a longo prazo Sarajevo esteve sujeita a um cerco de 1425 dias Acredito, firmemente, no diálogo interno, na responsabilidade política e no compromisso entre os líderes locais A adesão plena [à UE] continua a ser o nosso objectivo estratégico O país funciona como um único Estado, embora com uma estrutura interna complexa A Rússia exerce A Rússia exerce uma influência significativa sobre os líderes políticos e as instituições da Republika Srpska Amílcar Correia