EDUARDO DINIZ
2025-03-06 22:05:23

A quantificação do desperdício alimentar ainda requer aperfeiçoamento, mas os dados disponíveis já permitem perceber que é nas famílias que mais se desperdiça. Eduardo Diniz, coordenador da Comissão Nacional de Combate ao Desperdício Alimentar e da Estratégia que dela saiu, pugna por uma abordagem integrada, que envolva a responsabilidade do consumidor, das superfícies comerciais e de entidades públicas. Indústria e Ambiente (IA): A mudança de Governo, em março de 2024, repercutiu-se de alguma forma na Estratégia? Houve alterações metodológicas, orgânicas, ou outras mudanças relativamente ao que estava em vigor antes? Eduardo Diniz (ED): A própria estratégia estava em revisão. Nós entregámos o relatório da ”primeira” estratégia (2018-2021) ainda no final do governo anterior, portanto foi passado esse relatório e o pedido de orientações, com a nossa opinião, ao novo governo, para relançarmos agora a Estratégia Nacional de Combate ao Desperdício Alimentar ”2.0”, e temos já muito trabalho feito. IA: O governo ainda está a avaliar essas propostas? ED: Nós fizemos um concept paper e tivemos orientações, e como a estrutura continua a existir, vamos começar agora consultas mais técnicas e já com documentação feita com a experiência adquirida. A primeira estratégia também foi criada ainda nem a definição de desperdício alimentar estava estabilizada. Não havia dados, havia uma intenção política. A questão do desperdício alimentar nasce em 2015 com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), no sentido de termos metas para, em 2030, reduzirmos em 50 % o desperdício alimentar. A própria União Europeia adota essas orientações da ONU e até é mais ambiciosa nos limites e começa todo um trabalho - nas políticas públicas, entre as boas intenções e pôr no papel, nem sempre é muito fácil. Só na definição do que é desperdício houve várias reuniões a nível europeu. Há questões tão simples como saber se as cascas entram, se os ossos entram, se as espinhas entram. Mesmo a métrica do desperdício em cada país é muito aberta, ainda há muita harmonização a fazer. Não há uma métrica comum a todos os estados-membros. Essa parte teórico-legislativa, depois legislativa, depois quantitativa e depois de envolvimento dos parceiros foi demorada porque estes processos públicos são sempre complexos.com a primeira estratégia, as infraestruturas e os pilares estão, neste momento, assegurados porque não só a nível europeu existe uma plataforma europeia e reuniões europeias regulares, como saiu legislação sobre essa matéria. Internamen-te, também está cada vez mais divulgada a questão do desperdício. Há alguns anos era algo de que se falava sempre muito associado à doação, mas não como um problema ambiental, de sustentabilidade, de gestão de recursos - porque há todas estas dimensões. Há uma componente de desperdício de recursos naturais e até uma questão moral, que é desperdiçar os alimentos. Como a cadeia alimentar é muito longa , começa na produção até ao consumo das famílias - há uma série de intervenientes a quem não podemos impor nada. Tem de ser por transparência e tomada de consciência. Grande parte dos consumidores não têm noção de que desperdiçam, acham sempre que é o outro que desperdiça. As pessoas acham que o desperdício está mais concentrado, por exemplo, nos restaurantes ou na indústria, e não é verdade, está muito concentrado nas famílias. IA: Neste momento já foi possível quantificar onde o desperdício é maior? ED: Já temos agora dados, finalmente. A Comissão Nacional foi criada tendo na sua composição 18 entidades de nove áreas governativas, duas associações ligadas aos municípios e o Banco Alimentar. Na altura dividimos em subgrupos, um mais dedicado às questões da segurança alimentar e do controlo. Houve um trabalho muito interessante com a ASAE e a DGAV junto das entidades que faziam a doação, para explicar e ter manuais básicos, porque é muito bom fazer doação, mas tem de ser com segurança alimentar. Foram também criados grupos para as vendas, por exemplo para potenciar a venda dos alimentos em desperdício. Têm aparecido muito mais agora os selos dos produtos com a validade a terminar , era um dos nossos objetivos, até com lineares próprios, mas depois fez-se um protocolo com a APED [Associação Portuguesa de Empresas de Distribuição] e os resultados têm sido interessantíssimos. Muitas destas entidades nem tinham noção de que tinham uma ação sobre o combate ao desperdício alimentar. Há sítios onde era mais difícil atuar, enquanto não tivéssemos os números. Os números nacionais estão acima da média da União Europeia, mas acho que aí também há maior necessidade de harmonização dos dados. IA: Uma das dificuldades é precisamente a au-sência de um método de medição harmonizado a nível europeu. ED: Mas temos os dados. IA: E esses dados foram obtidos por métricas desenvolvidas cá, ou seja, continua a não existir um método harmonizado ED: Continua a não existir, e mesmo a nossa métrica, que foi um grupo de trabalho entre o INE, a APA e o Gabinete de Planeamento, trabalha um pouco por proxy, por aproximação, ao ver a questão dos resíduos orgânicos nas cidades, [com base em] fontes administrativas. Isto também tem de ir ganhando maior aperfeiçoamento, porque o INE com certeza não está preparado para, de um momento para o outro, ter de fazer coisas tão sofisticadas. IA: Mas então essas comparações com a média europeia têm de ser lidas com alguma cautela? ED: Têm de ser lidas com alguma cautela. Um dos países que mais desperdiçam é a Dinamarca, mas se calhar tem uma métrica muito mais apurada. E outros terão métricas menos apuradas. Quanto mais adaptados os dados estiverem à realidade, melhor. A partir de certo momento, estejam abaixo da média ou acima da média, começam a dar uma tendência. Os primeiros dados foram de 2020, que saíram em 2022. Já temos mais dois anos de dados, portanto eu diria que está estabilizado, embora tenha subido ligeiramente. Estamos com 184 kg desperdiçados por habitante, quando a média europeia está nos 132. E depois temos também alguma diferença. O segmento que mais desperdiça são as famílias, a nível europeu 54 %, a nível nacional 67 %, depois vem o retalho, com 12 % no nosso caso e 8 % na UE. Na restauração são 12 % no nosso caso, 11 % na UE. Na indústria alimentar são 3 % no nosso caso, 19 % na UE, e na produção primária 6 % no nosso caso e 8 % na UE [dados relativos a 2022, publicados pelo INE em 2024]. Há aqui algumas diferenças, embora o segmento em que se desperdiça mais é nas famílias, agregadamente. Podemos achar que não desperdiçamos quase nada, mas é o somatório de todas as pessoas que faz este desperdício muito elevado nas famílias. Temos aqui uma questão importante agora, que é a [proposta de revisão da] Diretiva-Quadro Resíduos, que está agora em discussão. Já começaram os trílogos na negociação a nível europeu e existem também metas mais ambiciosas para esta questão do desperdício alimentar. A antecâmara dessas novas exigências, por via da diretiva, e a experiência adquirida com a primeira estratégia e com os dados, que já nos começam a dar alguma tendência, é um momento bom para refletirmos onde podemos aperfeiçoar. Esta questão de depois termos o desperdício em cada segmento é útil, mas simultaneamente também tem riscos, porque ficamos só preocupados com o nosso segmento, e enquanto na distribuição ou na indústria há representantes diretos sobre esta matéria, nas famílias não há. Temos de ter consciência que todos os segmentos a montante também contribuem para o desperdício a jusante. Claro que a responsabilidade é individual, não podemos também infantilizar o consumidor. Mas se no retalho faço uma promoção ”Compre 1, leve 6”, estou a contribuir para o desperdício. Se no restaurante não posso levar os restos para casa, estou a contribuir para o desperdício. Se na indústria não faço inovação ao nível da preparação dos produtos e da embalagem dos produtos, contribui-se para o desperdício. Falamos muito de responsabilidade partilhada: todos têm de contribuir, em todos os segmentos, para reduzir o desperdício. IA: Qual é, então, o ponto de situação da estratégia neste momento? ED: É uma fase de transição, uma nova estratégia. IA: Já se pode dizer que há objetivos que estejam cumpridos e outros em fase de cumprimento? ED: Temos o relatório final: houve coisas que correram melhor, outras pior, mas o nosso site é muito transparente e os resultados são transparentes, até porque colocámos métricas e indicadores para cada uma das coisas. De uma forma geral, acho que ficou estabilizado que o desperdício alimentar socialmente é um problema. Do ponto de vista dos organismos mais diretamente associados ao manuseio dos produtos e às entidades que trabalham a doação e outras, é algo que está incorporado nas suas atividades. A infraestrutura está criada. A questão das boas práticas é algo que tem sido dinâmico, mesmo na grande distribuição. Mais de 70 % do nosso comércio agroalimentar passa pela grande distribuição, que está também muito sensibilizada para o assunto. Nós agora queríamos continuar este trabalho de consolidar a articulação, é um dos eixos. Outro dos eixos é reforçar a governança. Acho que esta comissão tem corrido muito bem, mas é um trabalho extra para todos os organismos que lá estão, inclusive para o Gabinete de Planeamento. A matéria é tão interdisciplinar que tem de ser sempre algo deste género, não conseguimos criar um silo só para tratar do desperdício. Mas essa consolidação, esse reforço da governança é importante, e estamos com esta experiência adquirida. Achamos que particularmente as autarquias têm um papel fundamental porque não só atuam ao nível da gestão dos resíduos, como atuam com as transferências que têm vindo a ser feitas ao nível da educação, com as cantinas. Nós não queremos impor , há legislação da Assembleia da República sobre esta matéria - mas dentro da governança ou mesmo a nível transversal, não basta os organismos a nível central ou as associações mais agregadas atuarem, é necessário descentralizar o mais que pudermos dentro dos nossos objetivos e de todo o trabalho feito. É um segundo eixo muito importante. O terceiro eixo é a questão de olhar para o consumidor numa perspetiva integrada. Todos contribuem para o desperdício do consumidor. Somos responsáveis pelo que compramos e pelo que deitamos fora, mas temos de ter em atenção que há certos tipos de comportamentos comerciais que podem também contribuir para isso. E depois, do ponto de vista regulatório, continuamos a achar que as melhores medidas são medidas voluntárias, medidas de incentivo em vez de medidas impositivas, porque é uma matéria extremamente multidisciplinar e corre-se o risco de empurrarmos para os diferentes segmentos se recorremos muito à imposição. Algo em que na primeira estratégia hesitámos muito foram as questões tributárias. Eu acho que há espaço, com o conhecimento que já temos, de trabalhar algo a esse nível. Eu costumo dizer que a doação é algo muito importante, mas é política social, não é política do desperdício. O maior desejo do coordenador nacional de combate ao desperdício alimentar é ser despedido: é sinal de que não há desperdício e o problema está resolvido. Claro que a doação é muito importante, mas doar alimentos a populações necessitadas é uma política social, não é uma política ambiental. Claro que é importante, claro que vai sempre haver algum desperdício e tem de ser reutilizado. Nas questões tributárias, podemos ver no senti-do do incentivo, mas temos de ver que isso não seja um contributo para a má contratação. As escolas [também] são absolutamente fundamentais. Não se pode perder a questão da sensibilização, e é dos setores que mais enviam feedback , pedem-nos muito apoio, pedem-nos materiais, pedem-nos às vezes para ir a sessões, é dos setores mais reativos. IA: A análise SWOT da estratégia identificava, nas forças, a existência de boas práticas e a redução do impacto ambiental associado à produção de resíduos orgânicos. Que boas práticas são estas e de que forma se tem vindo a reduzir este impacto ambiental? ED: Há exemplos de boas práticas em todas as empresas, em todos os setores. Há o programa da Fruta Feia [cooperativa formada para combater o desperdício causado pela padronização estética de frutas e hortícolas], por exemplo. É esse tipo de exemplos que muitas vezes surgem e depois [levam a] uma certa profissionalização dentro do setor agroalimentar, e pelo menos as perdas são sempre reduzidas, até porque é do próprio interesse das empresas. Relativamente ao selo do último dia, em 2023 tinham aderido a este protocolo 2676 lojas, o que permitiu escoar 27 mil toneladas de alimentos com data de validade próxima do seu termo. É um aspeto concretizável com números. E outra questão foi o trabalho da ASAE diretamente com os bancos alimentares e a Refood, de explicarem como é que se conserva em frio. É mais difícil de medir o que isso retirou, mas foi muito interessante este aspeto de o serviço de inspeção e de controlo estar a contribuir para o desperdício não acontecer. IA: Na questão da inovação, de que forma a indústria agroalimentar tem acompanhado estas necessidades, ou seja, que tipo de inovações têm surgido? ED: A questão da embalagem é um duplo desafio. Retirar o plástico vai ser um problema para a conservação dos alimentos, mas além disso a indústria alimentar está sempre a apresentar novos produtos, também dentro de uma lógica de aproveitamento de subprodutos e de economia circular. Muitos alimentos também aparecem feitos pela indústria , os subprodutos para canalizar para outras aplicações, até para alimentação animal. Na questão da energia e da água, temos imen-sos exemplos de indústria cada vez mais com poupanças de água e reciclagem da água com métodos cada vez mais interessantes. IA: Em 2025 entra em vigor a recolha obrigatória de resíduos orgânicos. Isso teve impacto ao nível da estratégia? ED: Eu coloco a questão ao contrário: vai-nos ajudar muito. Estamos abaixo das metas, até porque as nossas estimativas estão baseadas nos indicadores que vêm das empresas de recolha de resíduos, portanto quanto mais apurado for esse resíduo orgânico como resíduo alimentar, mais fidedigno é o nosso trabalho. E essa recolha tem méritos a jusante, na gestão dos resíduos e também para a apreensão dos agentes da cadeia e de, mais uma vez, o consumidor final perceber a quantidade enorme de resíduos. Nós fizemos inquéritos, e o que mais se desperdiça é pão, por exemplo. Depois também temos as dicas. A Direção Geral do Consumidor fez uma ação de boas práticas ao comportamento do consumidor, de como deve fazer as compras, como deve conservar os alimentos. IA: Isso foi divulgado através de campanhas? ED: Foi divulgado através do nosso site e, na altura, da Direção Geral do Consumidor. Agora há também os Unidos Contra o Desperdício [movimento cívico de combate ao desperdício alimentar], que é uma iniciativa boa. Nós precisamos de uma aliança com as autarquias e com os privados. Aí os privados são muito mais flexíveis. Para a administração pública, há que fazer este trabalho mais de estabelecimento dos conceitos, da legislação, da articulação institucional, das metas, do trabalho regulatório de incentivos , é a nossa genética. AS ” PESSOAS ACHAM QUE O DESPERDÍCIO ESTÁ MAIS CONCENTRADO, POR EXEMPLO, NOS RESTAURANTES OU NA INDÚSTRIA, E NÃO É VERDADE, ESTÁ MUITO CONCENTRADO NAS FAMÍLIAS. ” MAIS QUANTO OS ADAPTADOS DADOS ESTIVEREM À REALIDADE, MELHOR. (...) ESTAMOS COM 184 KG DESPERDIÇADOS POR HABITANTE, QUANDO A MÉDIA EUROPEIA ESTÁ NOS 132. SOMOS ” RESPONSÁVEIS PELO QUE COMPRAMOS E PELO QUE DEITAMOS FORA, MAS TEMOS DE TER EM ATENÇÃO QUE HÁ CERTOS TIPOS DE COMPORTAMENTOS COMERCIAIS QUE PODEM TAMBÉM CONTRIBUIR PARA ISSO. PERFIL Licenciado em Engenharia Agronómica e especializado em Economia Agrária, Eduardo Diniz é diretor-geral do Gabinete de Planeamento, Políticas e Administração Geral (GPP) há mais de 12 anos. Coordena a Comissão Nacional de Combate ao Desperdício Alimentar, sob a alçada do GPP, e a respetiva Estratégia Nacional de Combate ao Desperdício Alimentar CÁTIA VILAÇA